Sex 10 Junho 2011
Até Manchester foi um tirinho. Mais uma auto-estrada cheia de camiões a ultrapassar camiões, já me começo a habituar. O tempo está claro, parece que vou ter um dia bom. Parece…
Como este país me avariou as agulhas, claro que assim que assim que sai da auto-estrada me enganei no caminho. E andei perdida umas duas horas, devo ter andado às voltas pois passei duas vezes no mesmo lugar. Nada a fazer, decido parar no Pub dos Druidas e almoçar, com vista para um cemitério antiquíssimo e acompanhada por umas velhinhas de ar simpático que não tiram os olhos de mim. Com a barriga cheia é outra coisa.
As indicações do dono do Pub ajudam a encontrar o caminho que queria fazer. Horseshoe Pass, falaram-me que era um passeio a não perder, uma passagem entre montes, bem no meio de Snowdonia Park.
O País de Gales já não me arregala os olhos, depois de ter vindo das Highlands. É uma terra bonita, verdejante, muitas vaquinhas e carneirinhos nos campos verdes. A passagem continua a ser fantástica, mas muito parecida com outras paisagens que já vi por muitos lados.
Faço uma paragem no café Ponderosa, no cimo do monte, ponto de encontro da voltinha Domingueira do pessoal de Manchester. Peço um café e indicam-me a máquina. Neste país, os cafés saem das máquinas de escritório. Mete-se moeda, carrega-se no botão, sai um balde de café. Saudades da bica, tiro o copo da torneira antes de encher. Quando chego à caixa para pagar o Sr. Fica muito espantado … Está avariada a máquina … onde está o resto do café? … Fui eu que tirei o copo … Porquê? … Não quero mais café …. Olho para a máquina e já lá estava um empregado a limpar a torrente de café que saiu por fora ... todos me olham como se fosse louca …esgueiro-me para a esplanada …
Mal sai do parque de Snowdonia Park, começa a chover. Vou rumando a sul e a chuva não pára, é só para mim. A minha estrada é mesmo debaixo da nuvem escura. Olho para a direita, lá ao fundo, sol. Olho para a esquerda, sol. E eu no rasto da chuva e do frio.
Vou para sul, à espera de encontrar melhor tempo, mas o raio da nuvem negra não me larga. Perdi a vontade de passear, nem consigo tirar uma foto. A nuvem ganhou a batalha, seguiu sempre por cima de mim a jorrar água, estou encharcada, tenho as mãos roxas do frio. Por hoje chega, arranjo alojamento e enrolo-me nos cobertores quentinhos. O melhor mesmo é a nuvem largar a água toda por cá, por terras de sua Majestade. Estou a caminho de casa. Em Portugal, verão é com sol e calor. Já tenho saudades do sol quente.
Sáb 11 Junho 2011
Amanhã apanho o barco em Plymouth. São cerca de 400 km para fazer hoje. Lá fora está cinzento. Raio de tempo. Hoje estou preguiçosa. Saio para a estrada a meio da manhã. Daqui até lá abaixo não pesquisei muito para ver. Apanho a auto-estrada e vou direitinha para Sul. Já perto de Exeter o tempo abre. E a minha vontade de passear volta. Vou até Lands End, o ponto mais a Oeste de Inglaterra, o tal que marca a maior distância que se pode fazer nesta enorme ilha. Não fui lá acima, vou cá abaixo.
Saio da auto-estrada e percorro os 190 km até Lands End por estrada nacional, por estrada secundária e por estrada rural. À medida que me vou aproximando, a estrada diminui, fica mais estreita. Serpenteante por uma paisagem verde, ovelhas e vaquinhas, ando no meio de um postal ilustrado, tudo arrumadinho e, outra vez, estradas sem bermas. Até irrita.
Chego a Lands End e apanho mais uma desilusão. Primeiro, já está tudo fechado. Depois, isto é um local tão turístico que até perde a graça. Um parque de estacionamento gigantesco, de terra batida. Deserto. Um edifício enorme, cafés, restaurantes fechados, um pátio interior com restos de uma feira de carrinhos e bancas de venda. Até os lavabos estão fechados. Apenas o frio e o vento andam por aqui. Mas que raio, são 5:30h da tarde. Não me consigo habituar a estes horários.
Melhor assim, ando por ali a respirar a imensidão do mar, sozinha com as dezenas de coelhos a saltitar pelos relvados.
Sentada na relva, ao pôr-do-sol, penso que está a acabar. Já ando na estrada há 16 dias. Continuava por outros tantos, ou mais. Mas a saudade de casa fala mais alto. Já é muito bom poder fazer isto. Limpar a cabeça de um ano de trabalho e responsabilidades. Sentir a liberdade de fazer o que quero e quando me apetece, sem horários, apenas o horizonte que chama por mim, a curiosidade de ver o que se passa por esse mundo fora. Um pôr-do-sol é sempre uma altura mágica, o cair do dia significa apenas que vem aí outro dia. A vida descansa e renova-se. Esta viagem acaba aqui mas muitas mais virão.
Dom 12 Jun 2011
Ontem à noite levantou-se o temporal, choveu a noite toda, um som constante de bátegas grossas a bater nos vidros. Amanheceu cinzento, chuva, frio. Acordei com a esperança de dar uma última volta pela costa sul da Cornualha, procurar pequenas vilas piscatórias. Chove torrencialmente. A única coisa que vi foi o Pub perto do youth hostel onde pesquei umas torradas e um café. O senhor do hostel deixou-me ficar por aqui. Todos os restantes hóspedes saíram às 10h da manhã, como mandam as regras mas eu pude ficar ao abrigo do temporal. Tem um irmão motociclista que também anda a vaguear pelo mundo. Já não o vê há dois anos. Passo a manhã a ver TV e a esperar pela hora de embarcar.
Estou farta de frio, já chega de chuva, apetece-me voltar para casa, para o sol.
São duas da tarde, hora de ir para o ferry. Despeço-me do meu simpático anfitrião. O porto de embarque é já aqui ao fim da avenida. Saio a pensar se me vão deixar à chuva por muito tempo até embarcar. Tenho sorte. Mal chego, mostro o cartão de embarque e entro. Está um temporal danado. Atrás de mim está um grupo de espanhóis que também vieram da Ilha de Man. Começamos à conversa. São de Madrid. Convidam a “chica motera” para almoçarmos juntos. Um motociclista nunca está só. Haja outro por perto e há companhia de certeza.
O temporal continua. Mal o barco parte sente-se a ondulação do mar. Quanto mais longe da costa mais o barco tomba. A linha do horizonte abana como um pêndulo. Tudo mexe e range. Ondas gigantescas batem contra a frente do barco, escorrem pelos vidros, levantam uma nuvem de gotículas que parece fumo. Quando o barco bate no fundo da onda, treme, abana as estruturas, depois levanta a proa, salta, treme tudo, aperta o estômago, agonia. Esta travessia não está a ser fácil.
Não consigo estar no espaço dos restaurantes. Nem consigo almoçar. O cheiro a comida enjoa, as ondas a bater nas vigias impressionam. Encontro os meus Amigos dos Motorradres do facebook. O pessoal da Ilha de Man apanhou o mesmo barco, vamos juntos até casa. Fixe. Mas a conversa é curta. Estamos todos enjoados. Volto para a minha cabine. É um piso mais abaixo, na zona central no navio. O meu camarote é interior. Foi escolhido porque era mais barato. Ainda bem porque aqui dentro parece que mexe menos, é mais fácil controlar a náusea, quatro paredes que não mexem e um comprimido contra o enjoo que me deu o Paulo Lobato.
À noite já estou melhor. Tomar duche com o chão a mexer e a cabeça debaixo do chuveiro é um exercício de equilibrismo. A água teima em balouçar, tenho de me segurar e tentar ficar debaixo do jorro do chuveiro. A única solução é encostar-me à parede e virar o chuveiro todo para trás. Acabo a rir-me sozinha com a ginástica de tirar o champô do cabelo.
Subo para jantar. Há um montão de ingleses no deck de trás, a beber vinho e a ouvir o piano. Para eles isto é um cruzeiro, onde convivem e bebem uns copos. Conheci um velhote, que faz isto de 10 em 10 semanas. Diz que vai comprar tabaco a Espanha porque é a metade do preço.
As pessoas movimentam-se aos solavancos. Aos encontrões às paredes. Parece que está tudo bêbado. Até seria divertido se a náusea largasse a garganta. O jantar foi outro exercício de resistência. Tenho fome mas o estômago está embrulhado. Que raio de forma de acabar as férias.
Vou ter de dormir sentada. O barco não pára de balouçar. Faz-me lembrar quando era teenager e bebia uns copos. O mundo rodava sem parar. A única forma de dormir era sentada. Agora também, mas por razões diferentes.
Seg 13 Jun 2011
Acordo a meio da manhã, encostada às 4 almofadas que havia no camarote. O barco já não balouça. Cá fora está um sol fantástico. Estamos quase a chegar a Espanha, já sinto o calor de casa.
Mal desembarco, vem o bafo do sol. Paramos todos à entrada do porto. Começo por tirar o forro térmico. Eles têm de regressar hoje para Portugal, eu posso chegar só amanhã. Vou nas calmas por aí abaixo. Devagarinho como eu gosto. Despeço-me dos companheiros de alguns km e até breve.
Depois do frio todo, da maldita chuva que estraga a vontade de passear, atravessar Espanha debaixo do calor é uma bênção. As nuvens já não são escuras e ameaçadoras, carregadas de água. São tufos de algodão branco carregados de sol. Uma centena de km depois paro para tirar o outro forro do casaco. Fico apenas com o revestimento exterior e as protecções, abro os fechos respiradores. Tenho um sorriso de felicidade a pensar que o frio lá do Norte ficou mesmo lá em cima. Agora tenho as malas atafulhadas com os forros do casaco que me salvaram a vida nas Terras Altas.
Estou parada à beira da estrada, deitada sobre uma pedra a apanhar sol. Pareço um lagarto a expulsar o frio inglês. Sabe tão bem.
Mas tenho fome. Fome de comida boa, saudável, fome de comer. Acho que emagreci uns quilos. Só o cheiro a óleo que paira no ar inglês tira a vontade de comer. O orçamento era curto para entrar em restaurantes e as ementas também não chamavam pelo meu estômago. Apetece-me comer, apetece-me temperos, tenho fome.
Telefono ao meu Amigo Fernando do Motoclube de Mangualde. Dás-me tecto hoje à noite? Claro rapariga, tecto e jantar. Nem queria ouvir outra coisa. Arranco apressada a caminho de Portugal. Nem tenho consciência do caminho. Vejo a estrada passar veloz debaixo do pneu, nariz no ar a imaginar jantar.
Vou para casa. Adoro viajar, deslumbro-me com outros mundos, mas voltar a casa é sempre o melhor paraíso que há!